The Project Gutenberg EBook of O Bispo: Nova «Heresia», em verso, by Guilherme Braga and José Pereira de Sampaio (Bruno) This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.net Title: O Bispo: Nova «Heresia», em verso Author: Guilherme Braga José Pereira de Sampaio (Bruno) Release Date: January 15, 2011 [EBook #34961] Language: Portuguese Character set encoding: ISO-8859-1 *** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O BISPO: NOVA «HERESIA», EM VERSO *** Produced by Mike Silva Guilherme Braga O BISPO NOVA «HERESIA», EM VERSO ...Aucun baume, helas! ne peut secher la plaie. Il faut donc la sonder a toute profondeur, Et, pour seul antidote, étaler sa hideur. ÉMILE DESCHAMPS. Segunda edição com o retrato e uma poesia inedita do auctor, e um preambulo por J. PEREIRA SAMPAIO (_Bruno_) PORTO LIVRARIA CAMÕES DE FERNANDES POSSAS 136, Rua das Flores, 138 M DCCC XCV O BISPO PORTO TYPOGRAPHIA OCCIDENTAL Rua da Fabrica, 80 1895 [Retrato de Guilherme Braga] Guilherme Braga O BISPO NOVA «HERESIA», EM VERSO ...Aucun baume, helas! ne peut secher la plaie. Il faut donc la sonder a toute profondeur, Et, pour seul antidote, étaler sa hideur. ÉMILE DESCHAMPS. Segunda edição com o retrato e uma poesia inedita do auctor, e um preambulo por J. PEREIRA SAMPAIO (Bruno) PORTO LIVRARIA CAMÕES DE FERNANDES POSSAS 136, Rua das Flores, 138 M DCCC XCV AOS LIBERAES PORTUGUEZES E BRAZILEIROS DAS TERRAS DE SANTA CRUZ; A TODOS AQUELLES QUE N'ESSAS REGIÕES ESMAGARAM DENODADAMENTE AS VIBORAS JESUITICAS _Offerece_ este humilimo testemunho d'adhesão ás suas ideas e de sympathia pelo seu esforço _Guilherme Braga, o condemnado auctor dos «Falsos Apostolos». _ _ADVERTENCIA_ AO Bispo do Pará Embora sobre mim peze O teu anathema, ahi, Eu, bispo d'outra diocése, Tambem te excommungo a ti! Antes de lêr Propõe-se um editor novel, mas que benemerentemente para as lettras patrias inicia a sua carreira, salvar do esquecimento, a que a raridade dos exemplares d'uma edição limitada parecia indefectivelmente votal-o, o pamphleto poetico a que estas linhas servem de preambulo explicativo. As apparentemente pretenciosas palavras ultimas foram muito de caso pensado escriptas; e em curtos dizeres ellas poderão ser interpretadas segundo a modestia real das suas proporções. É claro que, no restricto acanhamento das algumas paginas que, mercê do plano proprio da pouco custosa publicação, lhe são concedidas, o redactor d'estas linhas, ainda que lhe sobrasse em meritos o que em competencia lhe escasseia, não poderia abalançar-se á critica d'uma individualidade litteraria tão viva, espontaneamente accentuada como a de Guilherme Braga, auctor do opusculo em reimpressão. Repetir, pela centesima vez, que o vate portuense pertence, nas suas mais altas culminancias, á categoria esthetica que o critico parisiense Laurent-Pichat marcou e definiu para os, por elle, primeiro, chamados _Poetas de combate_--ociosa banalidade seria, que não primava sequer pelo exacto rigor do asserto, visto como Guilherme Braga foi simultaneamente um poeta lyrico notabilissimo, d'uma sincera emotividade, admiravel n'essa sublime elegia _Cadaveres_, que é uma das raras paginas supremas, definitivas, em nossa moderna litteratura. Bosquejar uma resenha biographica do prematuro morto, tambem não parece tentamen, ahi, onde choram as pessoaes recordações de Pedro de Lima, melancholicamente penetrantes pela saudade amiga que as embebe, trespassa de lagrimas. E, se chronica critica se deseja, destacam abundantes de factos, acertadamente dispostos, e opulentas de sisudas apreciações as laudas que á gloria de Guilherme Braga consagrou o dr. Rodrigues Cordeiro. Assim, entendeu-se que melhor caberia, e, em certa maneira, seria até cumprimento de quasi obliterado dever, o explanar aqui um rapido historico da composição que reapparece perante um publico novo, differente na moral idyosincrasia d'aquelle que se agitava ao tempo da elaboração poetica. Na verdade, o _Bispo_, de Guilherme Braga, sem que o precedam, em sua leitura, algumas notas que o reintegrem nas condições peculiares da sua primitiva producção, poderá, talvez, a espiritos prevenidos ou scepticos, (pois que os extremos se toquem), poderá a esses espiritos, indifferentes ou hostis, parecer a aberração d'uma phantasia, forte e alta, mas desproporcional, e afflictivamente torcionada pela perseguição d'um delirio. É, pois, de saber o que determinou esta obra; e a busca das suas origens torna-se indispensavel desde que a actual geração está já bem longe da flagrancia dos episodios que occorreram e tambem, infelizmente, da vivacidade sentimental que elles despertavam em gentes menos addictas ao aspero egoismo que hoje é norma e criterio, lemma e regra, principio e conclusão, alpha e omega de todas as coisas e sentimento resolutivo de quaesquer crises subjectivas. Isto, já se vê, pela rama e deslisando sobre a superficie d'uma evolução que vinha de longe, pois que, completa, tarefa esta seria para um estudo amplo que, com a paciencia do leitor, largo levava. Visto como tudo se prende na vida collectiva, e os factos, que mais locaes, mesmo pessoaes, se perfiguram, derivam, aliaz, de motivos genericos, remotos, multiplos e complexos. Quando Guilherme Braga, erguendo os olhos de sobre o frenesi apocalyptico do genio de Victor Hugo, por então em vulcanicas erupções consecutivas, atropellantes, os circummandou em tôrno do seu paiz, d'esta viagem moral elles regressaram desmoralisados, desfolhados, da desesperadora desillusão, tão deprimente se lhes antolhara o espectaculo observado. Com effeito, entre nós, como, de resto, em todos os povos continentaes, o constitucionalismo gorára. Os seus theoristas ou tinham morrido, anonymamente, como Mousinho da Silveira; ou, consoante Herculano, haviam mergulhado na atonia d'um desespero quieto e môrno. Os que quedaram na brecha, aos poucos, foram sendo envolvidos na vaga da corrupção politica dimanada das altas regiões; ou, ainda, cansados de tantos, tantos annos de batalhas, incapazes, de resto, de grandes idéas de conjuncto, almejavam pelo repouso nos episodios de detalhe, como José Estevão com os interesses da sua terra natal, como Sá da Bandeira, nobre, ingenuamente occupado com o problema da civica honra collectiva, no caso da escravidão colonial. A convenção de Gramido assignara o reconhecimento da transitoria impotencia. Capitulara-se incondicionalmente, sem as honras da campanha, á fé e mercê do facil, incombatido vencedor. Tanto amolleceram as consciencias que a causa proxima da vasta catastrophe publica, Costa Cabral, veio a ter de se affastar da politica e do paiz, menos pelo irrisorio conluio da Regeneração do que porisso que, doutrinario fiel aos seus chimericos principios de crear uma nacionalidade, progressiva e forte, pelo influxo descendente do factor da auctoridade, elle já não tinha presa sobre a nação. Não havia mais nem amigos firmes nem inimigos estimulantes. A éra dos homens de convicção, logicos n'um concebido plano renovante, sobranceiros ás miserias do dia e, nas tortuosidades e nas brutalidades do concreto momento successivo, ideologos, como os sinceros liberaes, visando a um stadio moralistamente caracterisado, passára. A hora batera para a comedia dos interesses cynicos, para as contemporisações, para os sophismas grossos, para as communs, as triviaes patuscadas, para as opposições fingidas, para os votos comprados. Um duro, um sectario, um fanatico, um convicto, um tyranno, exaltado e nobre, sombrio, franco, triste, brutal, violento, sincero, como Costa Cabral, era uma figura demasiado pesada sobre uma esboroante terra de chatins, escravos ventrudos e satisfeitos. Não luziam já as estrellas, claras e ardentes, para os grandes felinos; nas meias sombras d'um ceu pardo, era o instante dos chacaes, das hyenas, dos lobos, das raposas. Logicamente, entrou em scena Rodrigo da Fonseca Magalhães. Tudo mudou; o ouro correu; a imprensa, por suas mesmas mãos, poz a mordaça das conveniencias; a tribuna papagueou o taramellar radotante das argucias que amam conservar o embuste do tom independente; cada cidadão encellulou-se no seu personalismo, absolvendo-se pela sentença, volvida regra da conducta, de que _tão bons são uns como os outros_; o paiz negociou, tripotou, enriqueceu-se, empobreceu-se, estonteado pela febre dos melhoramentos materiaes, avido de lucros, sem a educação dos negocios, cabeceando de crise agricola em crise bancaria, mineira, fabril; emfim, as amplas reclamações doutrinaes cessaram, e o silencio, o bem-amado, o suspirado silencio fez-se. Entretanto (eis aqui o modulo transcendente, pois que a França seja a promotora), entretanto, por assim dizer, de parceria, um terrivel successo consagrara-se definitivamente na Europa. A 2 de dezembro de 1851, o ex-prisioneiro de Ham resolveu-se, emfim, a romper do moroso torpôr onde ruminara Machiavelo. Seu adulterino irmão, o duque de Morny, pudera assegurar, alegremente, á curiosa dama que o interrogava, na Opera, sobre a plausibilidade do golpe-de-Estado, que, em qualquer hypothese, _dado que vassourada houvesse, elle se poria do lado do cabo da vassoura_. Um ingurgitante refluxo de retrogradação se produziu nos destinos da humanidade, e uma reacção theocratica, cynicamente mystica da banda de antigos carbonarios, voltairianos e livres-pensadores, havia, natural e logicamente, de tatear o desfecho nos medos supersticiosos, _ad usum Delphini_ procurados na propaganda jesuitica. Este movimento espontaneo foi accelerado ainda pelo idyllico casamento do imperador com uma hespanhola fanatica. Assim, sobre a expedição de Roma, as ulteriores violencias contra os patriotas garibaldinos, esmagados em Mentana, onde os _chassepots fizeram maravilhas_, não revestiram um caracter sporadico. Tudo é concordante no mundo; ellas representaram o estado moral de todo o conjuncto das instituições a de lá dos Pyrineus. Solidariamente, repercutiva, messianicamente, a de lá e a de cá. A influencia do recente condicionalismo beato da cultura franceza fez-se sentir entre nós, logo desde o primeiro instante; e seria curioso, n'este ponto de vista, explicar a vehemencia argumentativa com que a incredulidade lunatica de Pedro d'Amorim Vianna, mathematico e idealista, procurava dissipar os echos lusitanos das retumbosas conferencias do padre Ventura de Raulica em Nôtre-Dame. Subira ao throno portuguez um principe intelligente, honesto, erudito, povoado de boas, vagas intenções, convergindo a realisar entre nós o typo d'esses reis philosophos, a uma final degenerescencia, pelo veneno do virus dynastico, indeclinavelmente propellidos, conforme o amostrou a investigação, historica e fria, do emphatico Pelletan. Naturalmente melancholico, impulsivo mas retrahido, não pondo ao serviço das suas aspirações mais do que a mediania d'um talento inconsistente, D. Pedro V pertencia á especie corrente d'esses incomprehendidos romanescos que, como José II, d'Austria, fluctuam entre os indistinctos desejos de renovamentos, parcellarmente entrevistos, e as reticencias e as revertencias finaes a uma ordem consuetudinaria que lhes acalma o desastre de faculdades sobresaltadas mas fundamentalmente improliferas. De volta da costumada viagem de educação emprehendida pelos herdeiros ao estrangeiro, o novo rei trouxera para o paiz o deslumbramento das facticias pompas com que despontara o 2.º imperio; e o seu anhelo de imitação d'um modelo, levianamente reputado perfeito, descera mesmo aos insignificantes pormenores, como na introducção do uso do _képi_. Debil, activo e impressionavel, o joven monarcha ferira as nossas imaginações promptas, pelo interesse proclamado pela causa publica, pela irritada tristeza que lhe causavam os abusos, pela altiva, inconstitucional protecção votada aos humildes, para cujo serviço instituirá, na famosa _caixa verde_, um meio, facil e seguro, de sempre communicarem com as altas regiões. A affeição com que vestia as suas relações pessoaes, buscando occultar sob doces familiaridades a supremacia da sua situação excepcional, como no baile celebre da Sala do Risco para com o duque de Loulé, abria-lhe uma immensa zona de sympathias. Na verdade, tal é a monstruosa educação secular do preconceito da realeza que, d'entre os proprios homens cultos, nem mesmo os inimigos, pelas franquias parlamentares dispondo das condições politicas idóneas á extirpação das dynastias, se furtam a este effeito, atavico, segundo o qual um rei se affigura um ser inteira e transcendentemente fóra da humanidade. A lenidade, a doçura do temperamento, a candidez de coração succedera ao irritavel e irritante caracter, ciumento das suas prerogativas, intractando no seu orgulho, espessa e epilepticamente incivil, da rainha impopularisavel, a favor de quem a habil espada liberal fizera desalojar o bruto tio, toureiro e forçudo, tão sympathico á plebe pelo seu bestial feitio genuinamente portuguez. Comprehende-se, pois, a facilidade com que explodiu o enthusiasmo em torno do moço monarcha e como este, no esfumado dos seus vastos sonhos, se encontrou, sem attritos contaveis, nos termos de poder levar a effeito quaesquer idéas positivas, se porventura elle podesse emergir da nevoa dos semi-pensamentos, em que se esfarrapava, dissolvia a sua alma chimerica. O monarcha herdara dos talentos ancestraes; recebera, do finado imperador, com o typo physico, a similhança mental. De sorte que a utopia que latejara no cérebro do avô revivia a dentro do craneo do neto: ideologos, um e outro, as mesmas fórmas da chimera, como no sonho iberico, reproduziam-se, por descendencia. Era-lhes analoga a feição moral; egualmente possessos d'um identico, insaciavel desejo de saber, de vêr tudo, de conhecer tudo, de alterar tudo, de remecher em tudo, o modo moralista, peculiar da sua funcção de reformadores, a um e a outro, os dispunha a desdenhar dos problemas concretos da vida progressiva dos povos, a pôr todo o empenho nos remodelamentos das concepções abstractas que regulam a existencia moral das nações. Assim, o neto do principe que, primeiro, ousou, na lettra da constituição do seu paiz, introduzir a nova noção da realeza, referida ao poder moderadôr por Benjamin Constant, assignalava-se, aos olhos do embaixadôr hespanhol Pastor Diaz, por uma especie de monomania metaphysica, que lhe tomava as attenções para os mais abstrusos, estereis pontos da philosophia transcendental. N'este pendôr, não é de estranhar a pretensão, que começou a patentear-se no monarcha, a rehaver um mando, supremo e incondicional, nem será absurdo o suppôr que o pobre idealista coroado pensasse, sob a meia sombra d'uma consciencia silenciosa, em modificar por completo um reino arruinado. O modo particular das naturezas moraes como a de El-Rei é, com effeito, o da innovação, da intervenção, da substituição, o afan era refazer um povo por meio de decretos. O que longos annos d'um desenvolvimento continuo e previdente mal bastariam a consummar terminal-o n'um reinado, e substituir-se a immediata vontade autocratica á vontade tardia da historia; utilisar aos homens, mas como se creanças fossem, incapazes de formular racionalmente um voto para a melhoria das suas condições, gente a servir, como Louis Blanc o discriminou nos accidentes do abortado austriaco, sem que se receie, sem que se ame, tractando-a como cartas adscriptas ás combinações do jogadôr. Que idéas governativas, de conjuncto ou de detalhe, possuia, porém, o rei? Que planos amadurecêra pela reflexão e pelo estudo? A que alvo visavam os seus esforços? Tudo nos indica hoje que nenhuma idéa, nitida, clara, precisa, o monarcha se formava da sua situação e da do paiz, e que lhe seria impossivel redigir n'um programma de doutrina ou n'um projecto de actos as apparencias de pensamento que eram a miragem do seu coração, enganado de si-mesmo. D. Pedro V havia nascido com uma alma bem superior ao seu genio. O seu poder foi grande; pois que, nas affeições creadas, o enthusiasmo meridional, excessivo nos louvores como indiscreto nas invectivas, não conheceu limites ao seu impeto. Assim, os homens de entendimento que com elle conviveram, que accenderam no seu o cigarro d'esses devaneios philosophantes os quaes, no propicio silencio da noite, se lançam, a todo o vapor, no phantasmagorico mundo das previsões do futuro, acabaram por se gerarem uma especie de fanatismo pelo monarcha, fanatismo tanto mais perigoso quanto elle se não isolava do sentimento publico, que manifestara a sua fé nas virtudes reaes por meio d'esses inacreditaveis cartazes pregados nas esquinas das ruas das cidades, bradando: _Viva D. Pedro V, rei absoluto._ Theophilo Braga ainda os viu, amarellecidos das chuvas, nas paredes de Coimbra. Que importou isso? Esse poder era pequeno para uma vontade, nulla no vasio onde se agitava. Desorientado, o espirito real contentava-se com phraseologias symbolicas, como as lançadas á mocidade universitaria que o saudava:--_Tanto vale a alma quanto a intelligencia_, profissão de fé dos egoismos intellectivamente orgulhosos. E não se humilhava de fazer publica confissão de ignorancia nos pontos mais triviaes do ensino positivo, consoante nas curtas inquirições, ao engenheiro Mousinho de Albuquerque propostas no Porto. O rei era um metaphysico, um doutrinario retardado, e assim se explica o seu desdem pelo problema das grandes linhas ferreas, esteado nos pobres aphorismos d'uma economia infantil. A gloria, fogo fatuo que illude tantas naturezas, aliaz, a certos aspectos, curiosamente dotadas, não cessou, attrahindo-o, de o ludibriar. Esse foi o triste destino do lastimoso rapaz, que, no seu ardor em se crear uma fé, não encontrou em torno de si senão o desanimo que, na bocca do que escolhera para mentor, Herculano, se penitencia por se encontrar maior do que o do rei. Abandonado a si proprio, desamparado até nas suas acanhadas iniciativas, oriundas d'uma primeira educação, humanista e litteraria, como lhe succedeu no tentamen do _Curso superior de lettras_, o monarcha acabou por derivar no plano inclinado que leva á traição da liberdade. As suas usurpações constitucionaes foram successivamente accumulando os aggravos, ao ponto de prenunciarem vindoiras e mais crueis hostilidades dos serventuarios do principio dynastico. Demonstram-o as primeiras arremettidas da prolongada allegoria do _Rei de Sião_. Arquejando no difficil caminho dos bons propositos, a sua violencia para um confuso porvir foi de molde a correr o risco de se lhe escapar o presente. Tudo o que pretendia tentar para o bem dos seus subditos tão atrophiadas raizes embebia no resistente terreno da dura razão que, celebre pela philanthropia, ás escondidas assignava ignoradas sentenças de morte, para os longes coloniaes, como a do rebelde indiano. De modo que, quando a vida se lhe extinguiu, cheio de aspirações cerce amputadas, inconsolavel do seu sonho esparso, dissolto; quando, acabrunhado, partido, não tendo havido n'elle de sublime senão o desejo, finalmente fechou os olhos, poderia reputar-se no unico momento feliz do seu transcurso terrestre. A sua duração mais larga assignalar-se-hia, porventura, de terriveis catastrophes, visto como a ignorancia publica, que o idealisara, tendia a oppôl-o, symbolo de reacção, aos restos da iniciativa civica das classes liberaes e cultas. Com effeito, no desalento collectivo, no abortamento dos partidos, na resignada quietação dos grupos intermedios que, junto aos poderes publicos, servem a multidão, o povo começava a formar, em volta do nome do seu rei, a legenda piedosa que fundamenta e alicerça os despotismos. A historia inicia-nos na psychologia das multidões; nada é menos democrata, no fundo, do que a massa inculta. O rudimento das suas idéas condul-a sempre á auctoridade d'um só, facto moral naturalissimo desde que se pense em que, apontando-lhe o seu bom-senso a sua ignorancia, a tendencia será para se entregar nas mãos da competencia, tanto mais comprehensivel e tanto mais responsavel quanto mais centralisadamente reduzida. Ora, no paiz, tradiccionalmente monarchico e catholico, a solução estava encontrada desde que o seu rei se inspirasse, representativamente, dos sentimentos da população, trabalhada no momento por uma recrudescencia espantosa do religiosismo missionario. O monarcha chegara á crise e, pela tremenda peste que assolou Lisboa, o espirito soffrera, com a morte prematura d'uma esposa adorada, esse golpe em que Buckle buscou o coefficiente da exaltação mystica dos povos peninsulares. Voltou-se para Deus; procurou nos hospitaes dos cholericos o repouso, pela abnegação; decididamente, acompanhou o movimento do retrogradamento francez, pela introducção dos lazaristas, das irmãs de caridade no reino; mergulhou nas leituras symptomaticas, como as que lhe deu o conhecimento do Dante, conforme se revela da sua bella carta posthuma ao conselheiro Viale. A influencia sentimental do bondoso caracter do imperante havia ido, porém, tão longe que nem os alarmes que sobre os progressos do ultramontanismo procurou, n'um collectivo manifesto eloquente, communicar ao paiz Alexandre Herculano, nem a rude, a furiosa campanha de José Estevão, que, leão dormente, um instante restituiu ao parlamento essa interessada vehemencia que tanto surprehendera o principe de Lichnowsky, conseguiram abrir os olhos da ignara multidão. Tão certo é o erro dos que não querem reconhecer que a monarchia é o producto, directo e quasi infallivel, da espontaneidade popular. Educadora das massas, degeneram estas logo em suas escravas. Assim, melancholicamente, as gentes se retiraram, recolhidas, a prantear o seu rei. Os homens sinistros, que queriam governar em seu lugar, como elle se não conformasse a acompanhal-os nos seus crueis desatinos, haviam-o envenenado, ao misero! O novo reinado começou, pois, desconsoladamente; a lembrança do bem-amado estava proxima, tarjada de negro, regada da ineffavel agua dos olhos humanos. O principe successor feria pelos modos bruscos de homem do mar, repentinamente avocado a um meio que, por completo, desconhecia. Se, em sua estupidez, as calumniosas suspeitas logo se desfaziam a um ultimo sopro de recto bom-senso, envergonhado da infame torpeza, o certo é que as tristes apprehensões ficavam, escorias no fundo do cadinho. O que seria? O que viria? E o certo era que as maneiras altivas do dynasta, tão em contraste com a docerosa cortezia que se esvahira, chocavam, arrefeciam os fremitos, como n'essa primeira, gelada recepção da segunda cidade do paiz. Os politicos temiam pelo futuro; os cortezãos debalde explicavam a conducta de seu amo; e os poetas, inconscientes interpretes do sentimento popular, atravez os subservientes protestos hypocritas d'uma burguezia respeitadora das conveniencias, ousavam, como o snr. Diogo Souto, debruçar-se da beira dourada dos camarotes dos theatros, a apontar ao principe, pallido da audacia, o espectro arsenicado de seu irmão, gritando-lhe n'um terror: _Imita-o, imita-o bem!_ Mumificada no spasmo mystico, a consciencia publica, catalepticamente colleando, seguiu de rastos, ao cantochão ultramontano, até á beira do campo-santo jesuitico. Insistentes na sua obra lutulenta, os homens de Roma apoderaram-se da eschola, e uma funeraria ironia tomou para zona da sua revista de forças, para terreno das insolentes paradas o mesmo palacio de civilisação que, na frontaria, humanamente orgulhosa, do espirito que o fundou diz: _Progredior_, eu avanço. Então, sacudindo a sua merovingia cabelleira romantica, um bello adolescente, Guilherme Braga, um bohemio, um doido, como lhe chamava a mercearia contemporanea, ergueu, elle só, um formidavel grito, de dôr, de colera, de protesto: Os falsos apostolos, por nôme. A reacção alarmou-se; o impio foi excommungado, em sua mocidade, intrepida como a d'aquell'outro ephebo sublime de quem é a unica apotheose um derradeiro, simples, musical, maravilhoso verso do velho Hugo: _La gloire au front te baise, oh toi si jeune encore!_ Na sua faina concordante, o bispo do Pará (contra cuja obra nefasta começava a reagir victoriosamente a eloquencia do advogado Saldanha Marinho, recem-fallecido) não conheceu medidas. Propoz-se o enxovalho publico do joven poeta, que lhe replicou com o incendiado pamphleto que vé agora as honras, tardias, da reimpressão. Eis, succintamente, as causaes do magistral opusculo. Eis porque, n'esta hora triste, de nova reacção jesuitica, o seu actual editor, sobre se fazer benemerito das nossas boas lettras, se torna ainda meritente da respeitosa sympathia dos verdadeiros amigos da liberdade de consciencia. BRUNO. O BISPO I *Na cathedral.--Revelações d'um satyro* No claro azul d'um frio céu d'inverno, Sobre a collina onde a cidade dorme, Destaca, ao longe, o escuro vulto enorme D'antiga cathedral; Fica-lhe ao lado a succursal do inferno, --Velho epigramma ao lugubre edificio, --Largo covil doirado, aberto ao vicio,-- O paço episcopal... Bate o luar nos porticos escuros, Abrigo á noite de sinistras aves; Lá dentro, as altas, magestosas naves Envolve a solidão. Sobem, crescem mil sombras pelos muros, D'um bronzeo lampadario á luz distante, Sob as curvas da abobada ondulante Que estampa os arcos no marmoreo chão. O côro é largo e bello. Ali se abriga, D'um capitel nos rendilhados folhos, Um satyro, que ri, piscando os olhos, Lascivo como Pan. Dizer parece á cathedral antiga: «Porque me tens aqui, mostras-te ufana? Pobre igreja catholica-romana! Pobre igreja christã!» Diz com orgulho, gracejando, ao Christo: «Eu fico, a meu pezar, n'angustia absorto, Ao vêr-te assim crucificado e morto, Ó déspota dos meus! Não desejo ser Deus... se Deus é isto: --Um cadaver perpetuo exposto ao frio-- E, velho fauno desdentado, eu rio, Eu rio-me de ti!--de ti, que és Deus! Vês alem, por detraz do lampadario, Um satanaz assoberbando um globo? Deitado aos pés de Deus, parece um bobo Deitado aos pés d'um rei. Ao vê-lo assim, tristonho e solitario, Tive dó d'aquell'alma taciturna, E, na mudez da escuridão nocturna, Com elle me liguei. Vago rumor de vozes mal distinctas Nos guiou para os porticos do paço: Eu, sabendo que o bispo era um devasso, Previa a bacchanal... Escuta, ó Christo, escuta, embora sintas Chammejante de pejo o rosto frio, Tudo o que eu vi no lupanar sombrio, No infame lupanar sacerdotal: II *A humildade do bispo* Era um bello aposento, Que Faublas prezaria sem desdouro... --Ninho d'abutres, perfumado e fôfo, A que dava um revérbero sangrento, Á froixa luz d'um candelabro d'ouro, A adamascada purpura do estôfo.-- Molles coxins, em largas ottomanas, Convidavam a languidas posturas As Aspasias catholicas-romanas, As lúbricas sultanas D'aquelle _harem_ christão, meio ás escuras! Mil fragrancias subtis no morno ambiente; Ao centro a meza,--o impuro altar da orgia;-- Sobre a meza a baixella resplendente... A baixella roubada á sacristia: Crystaes por toda a parte, e, nos espelhos, Todo esse lustre a espaços reflectido, Da luz da orgia á froixa claridade... Satanaz debruçou-se ao meu ouvido Para dizer-me, a rir-se: «Os Evangelhos Aconselham ao bispo esta humildade!» III *Dolores* Sentado á meza, o principe da Igreja Inclina a calva fronte aos seios tumidos D'uma hespanhola, cujo olhar flammeja, E em cujos labios humidos, Rindo, o prazer de beijos s'enebria! Ao vêr-te assim, myrrada Pelos impuros halitos da orgia; Ao vêr-te assim, na sombra, arremessada Dos canteiros nataes a impura alcôva, Quem ha que se commova, Pobre flôr dos jardins da Andaluzia? Tem por nome _Dolores_... Por officio, vender a quem lh'os paga, Como não tem amor, os seus amores. É soberba e formosa! Brilhante e seductora!--imagem vaga D'Eva... já criminosa, Escondendo a nudez por entre as flores! Mixto de sombra e luz, de lava e gêlo, D'éden occulto e precipicio aberto, Prende, fascina, attrahe, céga, arrebata! Para quem dorme, em extasis, coberto Pelas ondas gentis do seu cabello, É como no deserto A mancenilha, que adormenta e mata! Os braços nus da joven messallina Cingem o padre, que, sorrindo, oscúla A carne branca, avelludada e fina, Que lhe é dado gosar... mesmo sem _bula_. Collam-se, em longo beijo, As duas bocas ávidas, famintas... Escuta, ó Christo, escuta, embora sintas O rosto frio a chammejar de pejo! IV *Supplicas e promessas.--Caracter evangelico do bispo* DOLORES Prende-me ás tranças formosas, Se tu és o meu amante, As joias mais preciosas Da tua mitra brilhante! Fulgirão co'as pedras tuas, Cheias de raios inquietos, Meus soltos cabellos pretos Nas alvas espaduas nuas! Haja depois quem se affoite A julgar outras mais bellas... São tranças da côr da noite, Precisam d'essas estrellas! O BISPO Rainha das feiticeiras! Venus, que sahes d'este mar! Pede tudo o que tu queiras, Tudo o que eu te possa dar. Louca, aos meus beijos entrega Teus hombros, teus seios nus!... Dou-te a igreja, o paço, a adega, O báculo, o annel, a cruz; As altas seges vermelhas Que tem cem annos, ou mais, E as gordas, rijas parelhas Das mulas episcopaes... Toda a riqueza que brilha No pomposo altar de Deus, E um dos meus cónegos, filha, Por cada beijo dos teus!... DOLORES Eu gosto de sentir nos braços froixos O enorme pezo do teu corpo exangue, Mas, se te collo a boca aos labios roixos Acho em teus labios um sabor a sangue!... Amas o sangue? O BISPO Adoraria a gloria De ter sentido, eu só, n'esta existencia, Todo o sangue dos martyres da historia Cair-me, gota a gota, na consciencia! Quizera ter colhido o goso ardente De vêr no circo, em Roma, as feras brutas; Nero a rir-se feroz, ébrio e contente, Nos braços nús das ébrias prostitutas! Os pallidos christãos,--torpes escravos,-- Expirando entre as garras das pantheras, E a turba inquieta prerompendo em bravos... Em bravos ao tyranno, a Roma, ás feras! Quizera, quando as sombras da heresia, Sobre um povo servil, grosseiro e baixo, Rasgava, escurecendo a luz do dia, Do Santo Officio o pavoroso facho. Quizera dar a humanidade inteira Á nossa chamma augusta, aos pôtros nossos, E, dos pôtros no horror, e na fogueira, Crestar-lhe as carnes, triturar-lhe os ossos! Mil peçonhentas viboras no seio A infame contra nós, sem medo, abriga. Mal sabes tu, mulher, quanto eu a odeio, A humanidade, a nossa escrava antiga! Podesse eu ter, ó pallida Dolores, Do sangue d'ella trasbordando o calix!... Era um rebanho vil; nós, os pastores, E a Realeza era o _canis pastoralis_... Tornou-se livre e audaz; mitras, diademas, Báculos, sceptros, esmagou n'um'hora! Quebrou, raivando, as solidas algemas, E a fronte, ergueu, sem medo, á luz da aurora! Mas que aurora, mulher! que vasto incendio Nos sombrios dominios do passado! Que opprobrio para nós! que vilipendio! Que roubo infame ao _senhorio herdado_! E assim ficamos nós, sem que lavasse De sangue um rio a nodoa!...--escura ideia! E assim trazêmos na orgulhosa face Perpetua a marca vil da mão plebeia!» V Movimentos de fera.--Risos longinquos Ergueu-se, febril, d'um salto, Como um tigre nos juncaes; Seus olhos chispavam lume Como os dos lobos cervaes; Crispava as mãos como garras; Tinha rugidos na voz! --Satanaz tremia, ao vêr-lhe O rude aspecto feroz. Correu á larga janella E, abrindo-a de par em par, D'um anáthema ruidoso Fez os espaços vibrar... --Ouvia-se, ao longe, ao longe, O rir convulso do mar. VI *O anáthema, fragmento do «Syllabus».-- Angustias d'uma alma piedosa* «Malditos sejaes vós, Progresso e Liberdade! Gémeos filhos do Mal, irmão e irmã do Crime; Tu, que és um sacrilégio, abôrto da impiedade; Tu, que dás força á plebe e esmagas quem a opprime! Vêde: por toda a parte as hydras do peccado Erguem altivo o collo, iradas contra nós, E o nosso bom cutello esconde-se embotado Na cova onde repousa o nosso extincto algoz! Por vós andam na sombra, errantes, perseguidos Como as feras no matto, os reis d'origem pura; Aos ministros de Deus preferem-se os bandidos... E assim chamaes aurora á noite escura... escura! Comvosco, onde assomaes, a tempestade assoma; Rebrame o vendaval no espaço onde rugis, --Negro sopro, que apaga as lampadas de Roma, E aviva ao mesmo tempo os fachos de Paris! Erguendo para os céus a pavorosa fronte O anjo da Assolação atraz de vós caminha; Quando o incendio alumia a extrema do horisonte Sois vós que perpassaes n'essa abrazada linha! E para que desmaie o fogo da heresia, O fogo a que se aquenta a sordida relé, Debalde sopra o clero á cinza inutil, fria, Aos ultimos carvões do extremo auto-da-fé! Ó pavidos heroes da lugubre tragedia Que a historia do passado aos seculos ensina! Ó despotas feudaes da torva idade-media! Ó soffregos irmãos das aves de rapina! Padres, em cuja mão fulgia a núa espada Co'as mil scintillações d'um raio abrazador, E em cujo ferreo peito a veste consagrada Tinha nodoas de sangue a macular-lhe o alvor! Monges de frio aspecto e d'animo impassivel Que, a bem do novo Deus, f'rieis os crentes novos; Ó dérviches de Roma, a cuja voz terrivel, Como á voz de Jehovah, tremiam reis e povos! Que é de vós? onde estaes? Que braço vos subjuga, Que, nem como um phantasma, a triste sombra ergueis, Ao vêr passar assim, na vergonhosa fuga, O clero envilecido, os infamados reis? No carro do Progresso ostenta-se a gentalha, --A luctadora vil, que um louco orgulho inflamma, E, ao cruzar triumphante a arena da batalha, Faz que lhe sejam solio os estendaes da lama. Da Liberdade aos pés rola, vilipendiada, Como um idolo torpe, a imagem de Jesus, E do eterno Voltaire a eterna gargalhada Persegue a Virgem-Mãe que chora aos pés da cruz! Fervem inda no espaço os odios implacaveis De que innundára a terra uma sinistra ideia, --A ideia que do lodo exalta os miseraveis E inspira «Oitenta e nove»,--a tragica epopeia! Para que espante os céus, para que o mundo aterre, Quantos éccos talvez de novo accordará, Fria como uma espada, a voz de Robespierre, Ardente como um raio, o grito de Marat?! Esse tempo em que a plebe, os rôtos, os descalços, A ignobil multidão, potente em seu reinado, Tumultúa, a rugir, d'emtorno aos cadafalsos, Onde expia a Realeza as glorias do passado; Esse tempo sinistro ha de voltar, e em breve! Cedo as vagas fataes d'immensa revol'ção, Como as ondas do Éri', massa d'espuma e neve, Passando sobre a terra, a terra assolarão! Debalde o Vaticano affasta a sombra estranha Que peza sobre nós, de tanto horror transidos; Debalde irrompe a luz dos flancos da montanha Que é fulgido Sinái aos crentes perseguidos! Fluctuam já sobre elle a tempestade e a morte: Véla-o, como um sudario, a nevoa sepulchral, E Roma julga ouvir, nos vendavaes do Norte, Das barbaras legiões a marcha triumphal! Emquanto a voz d'um velho, em lagrymas banhada, Clama contra a revolta, obscura, su'terranea, Sem pejo se arremessa a Italia deshonrada Nos braços varonis dos povos da Germania... Em vão, ó sacro asylo, em vão inda retumbas Co'a sussurrante voz das santas orações: Os servos do Senhor descem ás catacumbas; Acolhem-se do _nada_ ás frias solidões! Mas que m'importa a mim que o resto se acobarde, Se eu não cedo ao martyrio os fóros da opulencia? «É tarde!» disse alguem.--Não! inda não é tarde! Seja a lucta sem dó, sem tregoas, sem clemencia! Os que são contra nós inspiram medo e asco, --Venenosos reptis á flôr d'um lodaçal... Ah! podesse eu punir,--punir, como o carrasco! Ah! podesse eu vencer,--vencer, como o chacal! Podesses tu, risonha, eu placido e sereno, Approveitando o amor, o lubrico pretexto, Encher pelos festins as taças de veneno! Ah! fosses tu Vannoza... eu, Alexandre Sexto!» VII *Remeniscencias da canção dum proscripto* Disse, e a bella hespanhola, anciando de surpreza, Ia a lançar-lhe ao hombro as encruzadas mãos, Quando julgou ouvir, d'emtorno á lauta meza, Vibrarem mil clarins ao som da _Marselheza_, E erguer-se um grito ardente: «Ás armas, cidadãos!» Loucuras da hespanhola, Que uma vez, n'um café da Andaluzia, Tinha ouvido soltar-se aquelle grito Dos labios d'um francez, moço e proscripto, Que depois de cantar pedia esmola... VIII *Orgia.--Amor e vinho.-- Ainda o caracter evangelico do bispo.-- Mane, Thezel, Phares!* Eil-os de novo no calor da orgia: O BISPO O symbolo da Fé, O largo calix d'oiro Do velho altar da Sé, Enche-o de vinho transparente e loiro! Bebamos! Quem bebe acalma Todas as máguas que tem. Cá dentro, ás vezes, noss'alma Parece beber tambem. Não sabes como eu abranjo Os mundos que tu não vês? Colla aos teus hombros d'archanjo As azas da Embriaguez! Ai! verás como te elevas Nos sonhos que ella produz... Passarás da luz ás trevas! Irás das trevas á luz! Ha de abrazar-te em desejos Que ella mesma apagará; Has de sentir muitos beijos Sem nunca vêr quem t'os dá! Ora, a nudez, que enthusiasma, Pelo abysmo encobrirás, Fugindo como um phantasma Aos braços de Satanaz; Ora, ante os olhos do Eterno, Rolarás sem um só véu, Tentando, em nome do inferno, A castidade do céu! Ai! bebe, flôr do serralho, Como a rosa, a tua irmã, Bebe as perolas do orvalho De que se enfeita a manhã! Molha os labios á vontade No santo vinho hespanhol: As gôtas d'essa humidade Hei de eu seccar, como o sol! Quanto prazer se resume Nem tu calculas, talvez, No suavissimo perfume Do _Madeira_ e do _Gerez_! É justo que me acompanhe Tua alegria sem par: Venha o _Champanhe_! o _Champanhe_! Saltem as rolhas ao ar! Canta, ó deusa, que me abraças Cheia d'indomito ardor! D'entre o tinido das taças Solte-se um canto d'amor! Qu'importa o grito da plebe Que a miseria escravisou? Eu folgo; tu canta e bebe! És quem és: eu sou quem sou! Dizem que por essas ruas Andam vagando, ao desdem, Descalças e quasi nuas, Umas crianças sem mãe; Que, onde a miseria rebrame Contra a nossa ostentação, Avulta uma cousa infame Chamada prostituição; Que a sombra é vasta e profunda Nos desherdados casaes, Que a espaços a chuva innunda E abalam os temporaes; Que, entre a noite escura e triste, Por terem fome, uns atheus Perguntam se Deus existe, E, se existe, onde está Deus?; Que uns velhos, a quem se deve Profiqua gloria sem fim, Dormem, cobertos de neve, Ás portas do meu jardim; Que, sem tecto onde se acoite, Um bando de paes e mães Inveja, durante a noite, A casota dos meus cães; Que a Justiça, em vis calvarios Onde é vergonha morrer, Crucifica os operarios Que já não tem que fazer! Será, póde ser verdade... Mas, tão distante do céu, O archanjo da caridade Decerto que não sou eu! Canta! Bebamos! Scintille Noss'alma d'amor jovial! Haja um quarto do _Mabile_ No palacio episcopal! Quando, nas lagens marmóreas D'igrejas, ditas christãs, Já se exaltaram as glorias E o nome das certezas,(1) Qu'importa que n'estes paços, Longe do olhar de Jesus, Morra, na cruz de teus braços, Um sacerdote da Cruz? Canta, como as filomelas! Canta, como os roixinoes, Á flôr, ao lago, ás estrellas Dos teus jardins hespanhoes! Mas não cedes ao meu rôgo? Filha, em que estás a scismar? DOLORES Scismo nas letras de fogo Dos muros de Balthazar... IX *Pejo do satyro.--Satanaz e Deus.-- A immobilidade de Jesus.* Não posso dizer mais... não sei... não quero! Satanaz, a tremer, tomou-me o braço, E ambos, deixando o tenebroso paço, Voltamos para aqui: Rudes convivas dos festins de Nero! Sardanapálo! ó torvos seids d'Asia! Borgias! Tiberio! Messalina! Aspasia! Vós sabeis o que eu vi! Ó Christo! Aos pés de Deus lá dorme o vulto Do eterno tentador... N'aquella orgia, Se lá coubesse Deus, Deus rolaria Aos pés de Satanaz!...» Calou-se de repente e, meio occulto Do capitel nos rendilhados folhos, Ria cada vez mais, piscando os olhos, O fauno,--o hereje audaz. Jesus, no entanto, immovel, silencioso, A fronte morta para o chão pendia, Na terrivel postura da agonia A que o forçára a cruz... E ha quem espere um grito doloroso D'aquell'alma sublime? Ha quem espere Vêr passar o sorriso de Voltaire Nos labios de Jesus! X *Na immensidade* Longe, ao longe, na abobada do espaço Calma, impassivel, luminosa e fria, Pairava ancioso, vigiando o paço, Das orgias o archanjo,--a Apoplexia... AO POVO INGENUO Bem cedo, ó triste povo, ó pobre gente! Bem cedo eu te hei de vêr, em magua absorto, Ir, de joelhos, á capella ardente Beijar os santos pés ao bispo morto... No pó, na cinza, ó povo, a fronte roja, Ao vêr no esquife o Patriarcha austero... Tu, que poisas na mão que te despoja Mil ósculos d'amor crente e sincero! Se elle houvesse o «direito do mais forte» Arrastarias vergonhosa algema; Vivo, odiou-te: adóral-o na morte! Derradeira abjecção! baixesa extrema! Quando has de tu deixar as vis doutrinas, As vis superstições dos tempos velhos, E fazer cathedraes das officinas, E procurar na Sciencia os Evangelhos? Quando has de tu surgir calcando arminhos, Nos salões onde, altivos do seu _nada_, Ri a mitra da c'roa dos espinhos, E o sceptro inutil da prestante enxada? Quando has de tu entrar na grande liça, E, saccudindo o teu grilhão desfeito, Dizer ao Padre: «Eu chamo-me a Justiça!» Dizer ao Rei: «Eu chamo-me o Direito!»? Succeda á farda a blusa; o ganho á esmola; As armas do trabalho á carabina! Onde estava a prisão surja uma eschola, E um theatro onde estava a guilhotina! Da liberdade atalayando o asylo, Sê magestoso e bom, sê grande e puro; Toma, nas rijas mãos, bravo e tranquillo, A sagrada bandeira do futuro! É já longo o caminho do Calvario Que trilhas, sob a cruz, ha tantos annos!... Desfaz, quebra, estilhaça o teu rosario! Calca, assoberba, esmaga os teus tyrannos! Porto, 12 de novembro de 1873. NOTA (1) Quando nas lagens marmoreas D'igrejas, ditas christãs, Já se exaltaram as glorias E o nome das cortezãs... «... Foi visto por muito tempo, na igreja de Santa Barbara (Roma), o tumulo da afamada cortezã Imperia, tão celebre no tempo de Leão X. Haviam-lhe gravado no marmore a seguinte inscripção, exaltadora da formosura d'aquella mulher: _«Imperia cortisana romana, quæ digna tanto nomine raræ inter homines formæ specimen dedit, vixit annos XXVI, diis XII, obiit 1511, die 15 Augusti.»_ A ninguem causava espanto vêr este preito de admiração tributado á memoria d'uma mulher que viveu na devassidão e na crápula! EUGÈNE BRIFFAULT--_Le secret de Rome au XIX.me siècle._ EXEMPLAR DE BRINDE DO AUCTOR A SUA ESPOSA Á doce e affavel companheira dos meus actuaes dias de soffrimento, á companheira affectuosa de oito annos, até 19 do corrente, e dos muitos outros que decorrerão mais felizes, numa modestissima existencia--se o Destino quizer-- Offerece para guardar como segredo GUILHERME. _Sabes que o meu amôr é teu por toda a vida, E inda não tens um_ Bispo? _Ha mezes!... que preguiça! São cousas da cabeça, um tanto distrahida, Pois quanto ao coração fazes-lhe tu justiça!_ _23--maio, de 1874._ End of the Project Gutenberg EBook of O Bispo: Nova «Heresia», em verso, by Guilherme Braga and José Pereira de Sampaio (Bruno) *** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O BISPO: NOVA «HERESIA», EM VERSO *** ***** This file should be named 34961-8.txt or 34961-8.zip ***** This and all associated files of various formats will be found in: http://www.gutenberg.org/3/4/9/6/34961/ Produced by Mike Silva Updated editions will replace the previous one--the old editions will be renamed. Creating the works from public domain print editions means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. 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Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm concept of a library of electronic works that could be freely shared with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper edition. Most people start at our Web site which has the main PG search facility: http://www.gutenberg.net This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, including how to make donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.